Tempos em que, da arquibancada, vinha sempre o ambiente de decisão. Pressão sobre o apito, vaias ao domínio adversário, vibração a cada bola espirrada pela zaga. Época em que, no gramado, quando a situação apertava, um moleque da base decidia.
Não, não era a Lusa daqueles tempos. Mas era uma Lusa consciente disso. E que compensava a falta de qualidade técnica e até de condição física com vontade, garra, disposição e organização. Os atletas pareciam se multiplicar na marcação.
Quem também parecia se multiplicar era a torcida. Os pouco mais de três mil presentes cantavam como se seis, nove ou doze mil fossem. O volume e a intensidade cresciam quanto mais o time precisava. Quem fechava os olhos imaginava um Canindé lotado.
Torcida da Portuguesa em jogo contra o Mirassol no Canindé — Foto: Dorival Rosa/Portuguesa
Era como se a torcida toda fosse a Leões da Fabulosa. Uns cantavam como se o canto fosse tirar a bola da defesa. Outros para aplacar a ansiedade e o nervosismo pelo tempo que não passava. Havia ainda os que cantavam olhando não o jogo, mas o céu.
Os ponteiros pareciam se arrastar, rastejar a cada volta no cronômetro. Enquanto isso, na arquibancada do Canindé, um uníssono “Lusa eô”. Um canto que mais parecia um mantra, uma oração, uma mandinga, uma profissão de fé. Fé no “milagre de Mirassol”.
Aquele que manteve, na última rodada e no saldo de gols, a Lusa na elite do Paulistão em 2023. Aquele que canonizou o goleiro Thomazella. São Thomazella. Um ano depois, o mesmo adversário, o mesmo risco de queda, mas agora no Canindé.
Era como se a vela acesa aos deuses a bola não pudesse se apagar. Como se o “Lusa eô” fosse o combustível da chama. A Lusa, desta vez, vencia por 1 a 0. Aquele resultado eliminava o risco de queda, dava a tão sonhada vaga na Série D do Campeonato Brasileiro de 2025 e praticamente selava a ida às quartas de final do Paulistão para enfrentar o Santos – um clássico que já decidiu um estadual, inclusive.
O técnico Pintado berrava à beira do gramado, gesticulava, pulava, dava pinotes. Se pudesse, certamente entraria em campo e reviveria os tempos de volante. A torcida, como que em sintonia, fazia a mesma coisa na base das palmas e da voz.
Quando o árbitro João Victor Gobi ergueu os braços para o apito final, o Canindé pareceu se elevar. Um grito como se fosse de gol. Quer dizer, foi mais do que isso. Um grito como se fosse de título. De conquista. De algo há muito tempo desejado.
O “Lusa eô” prosseguiu, mas já sem a mesma afinação. Até porque a voz estava embargada, as lágrimas escorriam no rosto, o coração parecia querer sair pela boca. Avós e netos, pais e filhos, irmãos e primos, amigos e desconhecidos. Abraçados.
Uma torcida castigada e apaixonada. Que viu, ao longo da última década, a Portuguesa despencar no cenário nacional da Série A para a B, para a C, para a D, até ficar sem divisão em 2017. E que, de lá para cá, só jogou a Série D em 2021, sem sucesso. Agora, com a conquista da vaga, o clube voltará ao cenário nacional em 2025.
Uma torcida que não merece tanto sofrimento. Que voltou à elite do Paulistão depois de sete longas temporadas na Série A2. E que, no primeiro ano, se livrou da queda na última rodada. Agora, em 2024, se livra na penúltima e tem como recompensa a volta às quartas de final. Sim, volta. Depois de 13 anos. As últimas quartas foram em 2011.
Não foi simples. Não foi fácil. Não foi calmo. Basta ver como a Lusa chegou a esta rodada. O vice-presidente de futebol Beto Cordeiro, o executivo Edgard Montemor e o técnico Dado Cavalcanti, que começaram este curto e rápido Paulistão, foram demitidos no meio do caminho. Sinal do quê? De um trabalho mal feito.
O presidente Antônio Carlos Castanheira demorou, mas caiu em si. Viu que errou, percebeu que precisava mudar urgentemente, trocou até um pouco tarde, mas deu tempo. A Lusa chegou a essa rodada do jeito que mais a caracteriza.
Um ex-jogador a frente do futebol, Eduardo Ferreira. Dois profissionais que vem fazendo um ótimo trabalho na base como apoio ao profissional, Alan Dotti e Cesar Michelon. E um volantão brigador, mordedor e lutador no banco: Pintado.
Pegou um elenco com buracos e limitações técnicas, salvo raras exceções. Com uma zaga que tomava gols a torto e a direito. Com um ataque que, todas as opções testadas, não amedrontava ninguém. E pior: treinado para ser ofensivo, propositivo
Aboliu a saída de bola com os pés desde o goleiro, permitiu ligações diretas, escalou três zagueiros e deu sinal verde para mandar a bola para longe da defesa. Sem a bola, impôs uma linha de cinco precedida por outra de quatro. Jogar no contra-ataque.
Alguma revolução tática? Algum incremento técnico? Nada. Pintado só arrumou a casa com o que tinha – ou não tinha – em mãos. E acrescentou ao grupo o que mais mostrou quando jogador, inclusive da Portuguesa, em 1999: garra, vontade, pegada, foco.
Teve erros nessa curta trajetória, mas o saldo fala por si. Dos 10 pontos conquistados pela Lusa, sete foram sob Pintado. Teve que ser assim. De forma pragmática, na base da dedicação e da superação, com a vibração de uma torcida carente de disposição.
Torcedor da Portuguesa acompanha o jogo contra o Mirassol no Canindé — Foto: Dorival Rosa/Portuguesa
Teve de ser um 1 a 0 suado e chorado. Teve de ser com um gol de um moleque, de um cria, de uma prata da casa. Maceió, captado por Dotti e César no sub-20 no ano passado, que mal era conhecido pela torcida. Que fazia seu segundo jogo como titular apenas. Quer algo mais Portuguesa do que isso? O clube da base salvo pela base.
Quis o destino que fosse mais uma vez contra o Mirassol. Cidade que merece uma capela de Nossa Senhora de Fátima, com peregrinação anual de torcedores da Portuguesa. A partir de agora todo lusitano tem um pouco de mirassolense.
Ninguém ali achava, acha ou um dia achará que foi na técnica. Foi na base da vontade. A vontade de fazer dar certo, de vingar, de conseguir a volta por cima. Até porque ninguém ali queria que fosse bonito, plástico, artístico. Queria que fosse efetivo.
Chega de piscar para o diabo, se equilibrar na corda bamba, passar o campeonato fazendo contas para não cair. Chega de colocar em risco anos de resistência. Chega de botar em xeque um longo, duro e intrincado sonho de reconstrução.
Os gritos incansáveis de “Lusa eô” eram um apelo, um pedido, uma súplica. Que, mesmo muito longe da realidade de outrora, a Portuguesa voltasse a ser Portuguesa por uma noite. Ser de elite paulista, ser do cenário nacional, ser um grande entre os grandes. Os anos dourados voltaram por um dia, ao custo de muita superação.
Na noite deste sábado, neste segundo “milagre de Mirassol”, a Lusa foi Lusa. Foi como se o “Lusa eô” tivesse invocado o velho Canindé, a velha Portuguesa. Em campo, em forma de suor e pulmão. Na arquibancada, em forma de lágrima e coração. Tudo que essa torcida quer é poder sorrir, viver e principalmente voltar a sonhar.
*Luiz Nascimento, 31, é jornalista da rádio CBN, documentarista do Acervo da Bola e escreve sobre a Portuguesa há 14 anos, sendo a maior parte deles no ge. As opiniões aqui contidas não necessariamente refletem as do site.