— O atleta é um ser humano, não uma máquina. Qualquer ser humano tem que ter o momento de lazer. Mas ele precisa entender que ele tem uma carreira e tem que saber que tem momento para tudo. O que eu fiz foi entender que, dentro da minha profissão, o meu corpo é o meu instrumento de trabalho. E quando eu passei a cuidar dele, ele cuidou da minha carreira — disse Zé Roberto, que se aposentou aos 43 anos.
Zé Roberto comenta influência da vida extracampo dos atletas nos resultados
Seis anos depois da aposentadoria, Zé Roberto mantém incrível forma física. Revelado pela Portuguesa em 1993, o jogador atuou no futebol até 2017, sempre em alto nível, e conta ter tido sua primeira lesão mais grave já aos 38 anos. Para o ex-jogador, sua carreira foi prolongada pelos cuidados com o corpo.
Quando entendo que meu corpo é meu instrumento de trabalho, vou cuidar dele. Me dedicando na parte física, me alimentando para ter uma boa recuperação. E focado na minha profissão. Por ter entendido que meu corpo é uma máquina e precisa de manutenção, a idade para mim foi só um número.
— Zé Roberto
Aposentado desde 2017, Zé Roberto mantém a forma aos 49 anos — Foto: Reprodução/Instagram
Há pouco mais de um mês, o técnico Jorge Jesus comparou Neymar com Cristiano Ronaldo. “O [Cristiano] Ronaldo tem mais paixão pelo futebol e conhece a prioridade. Ele [Neymar] tem mais paixão por outras coisas. Põe essas outras coisas da vida privada dele à frente”, disse JJ. Para Zé Roberto, no futebol de alto rendimento, o nível de preparo está diretamente relacionado aos resultados.
— No futebol de hoje quem vai ter sucesso é quem se prepara melhor. Ou seja, quem não se prepara, por mais que tenha talento, não vai alcançar os objetivos pessoais, porque perdeu o foco, porque está na zona de conforto, está priorizando outras coisas. Agora, aquele que foca, por mais que não seja tão talentoso quanto outro, ele chega, conquista, entra para a história — afirmou.
“O nosso lado brasileiro”
Nas últimas décadas, por motivos distintos, alguns dos grandes craques brasileiros viveram períodos de declínio técnico na carreira ainda jovens. Romário deixou o futebol europeu aos 29 anos, Ronaldinho Gaúcho voltou ao Brasil aos 31… Adriano, Ronaldo e Kaká também já não estavam mais na Europa aos 33. Mais recentemente, Neymar foi jogar na Arábia Saudita aos 31. Existiria algum segredo para a baixa longevidade dos nossos craques?!
Se eu tivesse 5% da mentalidade do CR7, estaria entre os 20 melhores meias daquele momento. Me atrapalhou aquele nosso lado brasileiro… De achar que já ganhou tudo e está tudo resolvido. De não querer algo um pouco a mais.
— Anderson, em entrevista ao ge
O ex-jogador Anderson, que venceu a Champions League aos 19 anos, com o Manchester United, e se aposentou aos 30, destacou um “lado brasileiro”. A declaração do ex-atleta motivou esta reportagem, que foi ouvir Bruno Mazziotti, profissional da saúde esportiva, com passagens por clubes de diversos países, como Shandong, Arsenal, PSG, Valladolid, Corinthians e Cruzeiro, além da seleção brasileira.
— Não vejo que a mentalidade do brasileiro seja de menos trabalho. A história de sucesso é maior do que de fracasso dos brasileiros que vão para fora. Não é por falta de mentalidade. Existe sim uma cultura profissional maior nesses centros europeus. E está ligado à questão da educação. O nível educacional destes atletas, infelizmente, é maior do que o dos nossos — disse Mazziotti.
Bruno Mazziotti deixou a coordenação de saúde e performance do Corinthians em janeiro — Foto: Marcos Ribolli
— Todo verão eu ganhava 4 ou 5 quilos, porque tinha em mente que já tinha dado muito durante dez meses. Você leva seu corpo ao nível máximo e as pessoas te xingam. Então seu tempo livre é seu tempo livre. Não me peçam que faça nada (nas férias) — revelou Hazard.
Bruno Mazziotti, que é formado em fisioterapia, com especializações na área de engenharia biomédica, destaca a importância da folga para os atletas. No entanto, o profissional alerta para os prejuízos que os excessos podem causar.
— O dia off nunca é prejudicial. Faz parte do processo de crescimento dos atletas ter uma pausa. Mas, se eu uso essa folga para diminuir a minha condição de sono, não dormindo mais que seis horas, e o consumo do álcool for muito grande, lógico que isso prejudica. Este estímulo abaixa a minha recuperação. Quando você não dorme bem, você não limpa do seu organismo a quantidade necessária de cortisol, o hormônio do estresse — explica.
Atualmente aposentados, Hazard e Bale passaram por grande decadência no Real Madrid — Foto: Getty Images
A cobrança excessiva no futebol
Todos os personagens ouvidos pela reportagem citaram o estresse, causado pela alta pressão exercida sobre os jogadores de futebol. Apesar de serem “seres humanos comuns”, os atletas lidam com um nível de cobrança que não é comum a nenhuma outra profissão. Para o preparador mental Lulinha Tavares, que atende nomes como Vitor Roque, Andreas Pereira e Everton Cebolinha, os jogadores precisam lidar com renúncias na vida privada.
— Jogar futebol deixou de ser uma atividade profissional e se tornou estilo de vida. É um caminho sem volta. Aqueles que quiserem estar nas primeiras prateleiras, precisam entender que é um negócio e parte do que eles fazem é jogar futebol. Pela exigência física e pela pressão que há de todos os níveis. Ele não é piloto de fórmula 1 que guarda o carro e vai fazer outra coisa. Ele é o carro.
Lulinha Tavares é especialista em psicologia esportiva e já trabalhou em clubes como Palmeiras e Fluminense. Atualmente, trabalha diretamente com a preparação mental de diversos jogadores de alto nível. Lulinha lamenta a resistência que ainda existe no futebol brasileiro para a parte psicológica.
— Na própria seleção brasileira ainda não temos o real valor dado aos profissionais da psicologia. Da parte médica temos vários profissionais, interdisciplinar. Ainda há uma resistência em alguns clubes. Cabe aos atletas buscarem para a sua parte pessoal. Eu acredito que vão se render a isso. A resistência por parte do atleta está sendo quebrada. Atletas de esportes diferentes, como Simone Biles e Medina estão falando. Não é uma opção, é uma necessidade. Não se vive mais sem você cuidar da mente dos seus atletas — acrescenta Lulinha Tavares.
De acordo com levantamento feito pelo portal “Trivela”, apenas dez clubes (50%) da Série A do Campeonato Brasileiro possuíam um trabalho psicológico no time profissional em 2023.
Andreas Pereira ficou marcado por falha grave na final da Libertadores em 2021, fez trabalho mental, deu a volta por cima e foi convocado por Dorival Júnior para a Seleção — Foto: Isabel Infantes/Reuters
Se, na maioria das profissões, os seres humanos podem ter outras prioridades e desligar quase que 100% de seus trabalhos nos dias de folga, com os atletas é diferente. É consenso, entre os especialistas, que os jogadores precisam ter cuidado integral com seus corpos.
Também é unânime o fato de que a pressão exercida sobre o trabalho dos jogadores é maior do que em qualquer outra área. Trata-se do alto preço a ser pago nos 15-20 anos, em média, da carreira. E, provavelmente, vale a pena pagar este preço. Afinal, quem não sonhou em ser um jogador de futebol?!