Abre Aspas: Anderson Daronco fala sobre começo na arbitragem e reclama da fama de fortão
No Abre Aspas, o gaúcho de 43 anos, filho de um alfaiate e uma costureira, contou que tem a meta de chegar aos 300 jogos no Campeonato Brasileiro. Fã de Bebeto e Romário, da Geração de Ouro do vôlei de 1992 e de Ayrton Senna, ele virou árbitro quase por acaso.
Educadamente, avisou que não podia falar de lances específicos e nem de personagens que amanhã pode cruzar novamente. Um deles, do caso que mais desperta memes e curiosidades, o atacante Hulk – que o criticou duramente em entrevista na beira do campo em julho de 2022. Daronco foi punido pelo STJD. Ele já apitou 37 jogos da Série A depois daquele episódio. Nenhum do Atlético-MG.
Anderson Daronco no Abre Aspas — Foto: Raphael Zarko
No futuro, com o livro que começou a escrever, perdeu o arquivo, mas está na cabeça, ele promete contar de tudo um pouco. Mas só quando encerrar a carreira.
– Não tem nenhuma caixa preta. Mas dá para falar com um pouco mais de liberdade (depois de parar de apitar).
Ficha técnica:
- Nome completo: Anderson Daronco
- Nascimento: 5 de janeiro de 1981, em Santa Maria (RS)
- Carreira: formado em Educação Física pela Universidade Federal de Santa Maria, desde 1999 pertence ao quadro de árbitros da Federação Gaúcha de Futebol.
- Desde 2008 é da Seleção Nacional de Árbitros de Futebol (SENAF) da CBF.
- Desde 2014, é árbitro Fifa.
- Mais de 230 jogos apitados na Série A do Brasileiro e já atuou em diversos jogos de Libertadores e das Eliminatórias sul-americanas para Copas.
- Eleito melhor árbitro do Campeonato Brasileiro de 2015, em eleição da CBF
Abre Aspas: Anderson Daronco
ge: Você é nascido, criado e formado em Santa Maria. Como é a vida do Anderson Daronco por aqui?
— Sou de um bairro chamado Itararé. Tive uma infância feliz, sempre pratiquei muitos esportes. Chegava do colégio de manhã, almoçava e já saía correndo para a rua porque queria jogar bola. Às vezes jogava vôlei também. Eu tinha 11 anos quando teve a medalha de ouro nas Olimpíadas de Barcelona. Jogava handebol, taco também. Tenho muita saudade de jogar taco na rua. Sou o filho caçula, tenho quatro irmãs mais velhas e sou nove anos mais novo do que a minha irmã mais nova. Fui a última esperança dos meus pais de terem um filho homem. A raspa do tacho, como dizem (risos).
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— Eu nunca tive muita habilidade não, mas era muito inteligente para jogar. Futsal, principalmente. Tinha muita força e inteligência para ocupar os espaços da quadra, mas no campo eu não tinha muito tempo de bola e confesso que eu era um zagueiro-volante que apelava. Eu deixei algumas cicatrizes em alguns jogadores (risos).
Daronco no Abre Aspas: árbitro de 43 anos quer chegar na marca de 300 jogos no Brasileiro — Foto: Reprodução
Seus pais também são de Santa Maria?
— Sim. Os meus pais vieram da roça. Na região de Santa Maria, a gente tem série de pequenos municípios que são de descendência italiana, de onde veio a família e meus avós. São da região que se chama Quarta Colônia de Imigração Italiana. Meu pai veio para Santa Maria com 18 anos para servir o quartel, para fugir da roça, né? Minha mãe veio junto.
— Meu pai foi a vida inteira alfaiate, um dos últimos alfaiates vivos ainda hoje no município de Santa Maria. Minha mãe é costureira. Trabalham até hoje, por mais que tenham uma idade avançada, com comércio aqui em Santa Maria.
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— Eu ficava louco. Era comércio de bairro e a loja era anexa à casa. Minha mãe muitas vezes pedia para eu cuidar da loja. Eu, criança, com 14, 15 anos, e cuidava da loja enquanto ela ia cozinhar o almoço, lavar alguma roupa. Algumas irmãs já moravam fora, só tinha uma que morava ali junto, mas ela trabalhava fora, então eu era o único que convivia o tempo todo na casa. Aí ia atendendo as pessoas assim que chegavam para comprar alguma coisa. Recebia dinheiro, anotava. Eu ficava muito bravo com isso, porque era um tempo que eu podia estar na rua jogando bola, andando de bicicleta. Isso acho que acaba me marcando um pouco e acabou me afastando um pouco dessa parte de seguir os negócios da família.
Como você iniciou no curso de Educação Física que depois te levou à arbitragem?
— Eu tive um grande professor no Primeiro Grau, que é meu amigo até hoje. Me espelhava muito nele. Também tinha um pai de um de um amigo meu de infância que dava aula no curso de Educação Física e eu frequentava muito a casa deles. Ele já era professor na Universidade Federal de Santa Maria. Eu me lembro que queria ser como eles, eu já tinha essa paixão pelo esporte. Prestei vestibular e passei de primeira na Universidade Federal de Santa Maria. Foi quando acabei sendo apresentado à arbitragem.
Daronco recebe troféu de melhor árbitro no Brasileiro de 2015 — Foto: Reprodução SporTV
Como se tornou árbitro de futebol?
— Eu nunca desejei ser árbitro de futebol. Minha única experiência com arbitragem até então, e não arbitrando e sim olhando, foi em 1998. Teve um jogo da segunda divisão aqui na cidade, foi a primeira vez que eu fui num estádio de futebol. Claro que, sendo apaixonado por futebol, eu tinha meu time na infância, mas eu nunca tinha ido a um estádio assistir a uma partida de futebol. Fui ver Inter de Santa Maria contra o Guarani de Venâncio Aires. Quem ganhasse subia. O Inter de Santa Maria perdeu de 1 a 0. Veio a subir num jogo que eu fui assistir também, no ano seguinte. Eles ganharam do São Paulo do Rio Grande também num jogo decisivo aqui em Santa Maria.
— Foram as únicas duas vezes que eu fui em um estádio assistir uma partida como torcedor ou sem o olhar de árbitro de futebol. E ali eu já via como as pessoas tratavam o árbitro, o bandeirinha. Via as pessoas na tela (grade). Pareciam uns animais. Esbravejando, gritando e tacando mijo. Jogavam na própria torcida, xingavam a torcida do outro lado. Ali que eu comecei a pegar um ambiente de futebol.
Você reagia de alguma maneira?
— Não, nunca debati. Eu só olhei e guardei para mim. Lembro também que tinha muita hostilidade com a presença feminina. Era uma época em que as mulheres não iam tanto e as poucas que iam, quando levantavam para comprar uma coisa ou para ir no banheiro, a própria torcida xingava de tudo quanto é tipo. Xingavam quem era da própria torcida do outro lado, no pavilhão social, que é onde, teoricamente, senta quem tem condição de pagar ingresso mais caro. Fui sendo preparado já sem saber de como funcionava um pouco esse clima de arquibancada.
Você xingava o juiz também?
— (Risos) Cara, tive alguma oportunidade. Mas eu não frequentava estádio, eu assistia muito pela TV. Mas logo depois eu acabei fazendo o curso de arbitragem, logo em seguida dessa época e quando eu assistia a um jogo e eu acabava reparando num erro de um colega ou alguma coisa eu também sempre procurava me colocar no lugar. Via que era um erro, claro, mas procurava entender.
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— Mas o meu pai xingava muito (risos). Ele era daqueles que pensa que tem uma teoria internacional contra o time dele, sabe? Eu era completamente o contrário, eu olhava sempre assim, “você só pode estar ficando louco, tchê”.
Quando você falou “vou ser árbitro de futebol, vou seguir essa carreira”?
— Não foi uma decisão que eu parei para pensar. Aconteceu naturalmente. Eu estava no curso de Educação Física e fiz o curso só para cumprir uma carga horária que tinha lá de atividades complementares de graduação no curso. Só aquele curso de arbitragem matava metade dessas horas. A maioria dos meus colegas da minha turma, do meu semestre de faculdade, acabaram fazendo esse curso. Só que eu não tinha dinheiro. E eu me lembro até hoje quanto custou certinho o curso de arbitragem naquela época. Era um valor o curso e mais um valor de um kit lá para apitar, ganhava uma meia, uma bermuda e uma camiseta.
Nascido e criado em Santa Maria, Daronco carregou a tocha olímpica na sua cidade em 2016 — Foto: Reprodução
— O curso custava R$ 330 e o kit custava R$ 100. Isso lá em 1999. Eu não tinha essa grana, até que uma irmã minha bancou, ela e meu cunhado. Tinha 18 anos, cara de guri, fiz o curso e meu grande interesse era no final pegar aquele diploma e registrar na coordenação do curso e dizer assim: “Não me incomoda mais com essa carga horária”. Mas durante o próprio curso realizei algumas práticas na faculdade. Tinha alguns jogos que te convidavam para apitar e já ganhava um troquinho. Conheci pessoal da arbitragem aqui em Santa Maria e estava apto a atuar em jogos oficiais pela Federação Gaúcha de Futebol.
— Inicialmente eu trabalhava muito em partidas de futebol amador, futebol de criança. Saía no nosso inverno rigoroso aqui, numa época que não tinha telefone celular, não tinha nada, ia na sexta-feira, depois de receber a escala: “Olha, Anderson, tu vai trabalhar lá como bandeirinha no campo tal, jogo tal, 8h da manhã”. Aí no sábado chovia, domingo chovia, nem sabia se ia se ia ter jogo ou não. Ninguém te comunicava. Aí chegava, não tinha ninguém no campo e, “opa, cancelaram o jogo”. E na época era para ganhar R$ 10, também me lembro até hoje. Era a taxa para esses jogos assim.
Daronco em Santa Maria: mais de 20 anos de arbitragem — Foto: Reprodução
Já era árbitro principal do jogo?
— Não, eu comecei como bandeirinha. Eles achavam que eu tinha cara muito de guri, com 18 para 19 anos. Trabalhava nesses jogos, mais como necessidade mesmo. Não tinha muita grana para comer na universidade. Às vezes ou não almoçava ou comia uma bolachinha recheada. O dinheiro da arbitragem já me dava a possibilidade de almoçar um pouco melhor na faculdade. Dava uma possibilidade de em vez de tirar cópia de um material do curso já poder comprar um livro. Já dava oportunidade também de comprar um tênis mais legal, um dinheirinho para poder sair da noite e se divertir com a galera, já dava um certo ar de ir de independência.
— Eu pensei: “Poxa, nessa fase que eu tô aqui, eu ganho X. Eu tô vendo aquele cara ali do meu lado, ele tá ganhando 2X porque já tá um bom tempo nisso. Daqui um pouco ali na frente eu posso ganhar isso aqui, com possibilidade de ascender”. Fui tendo pequenos objetivos na arbitragem.
— Meu grande sonho quando eu comecei na arbitragem não era apitar no Maracanã. Isso para mim era completamente inatingível. Principalmente por como funcionava a sistemática da arbitragem aqui no RS, em que o pessoal do interior era deixado em segundo plano.
trecho anderson daronco melhor juiz 2015
— Os meus sonhos iniciais eram apitar jogo em Pelotas, em Caxias, era conhecer o estádio Bento Freitas, do Brasil. Conhecer o estádio Boca do Lobo lá do Pelotas. Conhecer o estádio do Juventude, do Caxias, aqui que eram situações mais fáceis de serem atingidas por mim. E olha que tinha aqui ainda o Olímpico, o Beira-Rio, que que eu teria possibilidade de quem sabe de vir a apitar uma primeira divisão um dia, mas isso também era praticamente impossível.
— A primeira vez que eu pisei nesses palcos do nosso futebol aqui foi como se fosse a minha grande Copa do Mundo. Depois fui colocando pequenos objetivos que eu felizmente consegui indo ultrapassar todos eles.
Com tatuagem de caveira, cartola e cartões, Daronco pesa mais de 90 kg — Foto: Reprodução
Soube que você coleciona camisas de futebol. Tem quantas?
— Ah, tenho bastante. Não consigo falar quantas, mas tenho bastante. Era um sonho de criança. Meus pais não tinham dinheiro para me dar a camisa. Não vou falar também, obviamente, as primeiras que eu tive (risos). Mas é de praxe ganhar uma camisa aqui, outra ali. É situação completamente normal no meio dos jogos. Fui guardando, essa paixão foi se alimentando e hoje eu coleciono também camisas muito antigas dessa época de quando eu era criança nos anos 1980. Eu tenho contato com muitos colecionadores, quando eu vejo algo dessa época eu vou lá e cato. Porque é um sonho lá de trás que eu vou conseguindo realizar. Além de hoje, é claro, também ter camisetas de grandes craques da nossa da nossa época.
Você apitou jogo do Cristiano, do Messi. Pegou camisa deles?
— Tenho do jogo da Arábia Saudita com o Cristiano Ronaldo. Eu fiquei conversando com ele no final do jogo.
“Não teve nada (de briga)”, contra Anderson Daronco sobre conversa com Cristiano Ronaldo. Depois do jogo, ganhou camisa do português — Foto: REUTERS/Ahmed Yosri
Cristiano reclama de Daronco no jogo Al- Nassr contra o Al-Ahli em Riad — Foto: Francois Nel/Getty Images
— Isso até virou meme, né? As pessoas aqui no Brasil, acho que para ganhar alguns likes, criaram lá uma manchete: “Cristiano Ronaldo briga com Daronco”. Não brigou, não teve nada. O cara protestou por uma situação de jogo, assim como aqui no Brasileiro tem toda hora. Então os caras estão toda hora brigando comigo? E felizmente eu estava certo também na minha tomada de decisão (risos).
— No final do jogo a gente teve a oportunidade de conversar e falei que ficaria muito muito honrado se ele pudesse me presentear com a camiseta. Ele ainda assinou um par de cartões. Nesse jogo também acabei ganhando a camiseta do Firmino, que ele era do outro time. Dois grandes craques, um da nossa Seleção e um dos gênios da modalidade.
Os jogadores eu sei que ganham muito bem para atuar lá. E a grana para o juiz, foi boa?
— Eu preciso voltar. Preciso voltar mais vezes (risos). Não chega nem perto do que os caras estão ganhando para jogar lá, na arbitragem a realidade é um pouquinho diferente.
Dieta, nutri, alimentação regrada? Daronco conta que é viciado em chocolate — Foto: Reprodução
Foi de primeira classe no avião?
— Sim, a viagem é boa. Eu captei todos os chocolates que eu podia no avião. Eu sou tarado por chocolate. Eu queria de champanhe a chocolate. “Opa, manda, manda, vem, vem”.
Foi mais calmo apitar lá?
— Devem ter me xingado em tudo quanto é língua (risos). Mas foi muito bacana em termos de experiência.
Os brasileiros em campo te ajudaram?
— Foram os que mais incomodaram (risos). Jogou Alex Telles, e eu conhecia de apitar pelo Juventude, antes do Grêmio. Tinha o Otavio, que jogou na base do Inter. Eram os que mais falavam no jogo. “Tchê, vocês são os que mais falam. Era para estar me ajudando, vocês são os primeiros a estar me f…, c….” (risos). P…, me ajuda”. Já chega o croata, que não entendo nada. Eu ainda cheguei para o Firmino no intervalo, “vem cá, é normal isso aí que foi no primeiro tempo ou é por que sou eu que estou apitando?” Ele: “Não, pior que é sempre assim”.
Daronco tem mais de 230 jogos de Campeonato Brasileiro — Foto: Ricardo Moreira/Getty Images
E a camisa do Messi você também pegou?
— Não, do Messi só peguei a assinatura na minha camiseta. Ele é supereducado. E isso não é uma situação que é corriqueira no meio da arbitragem, de pedir algo pra um jogador. Não é algo que acontece toda hora. Mas é uma situação diferente. São situações únicas. Uma, tu tá pedindo uma camiseta do Cristiano Ronaldo. E a outra tá pedindo uma assinatura do Messi. Algo que está acima de qualquer levantamento de suspeita, inclusive, em relação à arbitragem.
Do Messi foi aquele jogo que ele arrebentou contra o Equador. Como foi?
— Até ganhar a Copa, tinha sido uma das maiores atuações dele com a camisa da seleção argentina. E era um jogo recheado de pressão, tinha chance de não ir para a Copa de 2018, contra o Equador lá na altitude. Tinha um mundo de olho nesse jogo, torcendo, os brasileiros secando e botam um brasileiro lá no meio da fogueira: “Te vira, apita esse jogo”. Era sem VAR, a gente tinha que fazer um jogo extremamente limpo e foi um dos grandes jogos que eu tive a oportunidade de apitar na carreira. Mas confesso que eu estava um pouco assim, ansioso. Tive muita dor de barriga antes de o jogo começar. Eu dava voltas no quarto do hotel, sozinho, girava. Acho que eu gastei o chão de tanto que eu circulava naquele quarto.
Messi conversa com o árbitro brasileiro Anderson Daronco em jogo da Argentina pelas Eliminatórias — Foto: Nathalia Aguilar/EFE
Falando de arbitragem. Essa pressão que os clubes fazem para vetar árbitro, como chega para vocês? Você é comunicado de que, por exemplo, um clube veio reclamar do seu trabalho?
— Não, não precisa nem avisar (risos). O site já dá, o ge já fala, já noticia. Mas eu procuro ficar um pouco de afastado disso porque não agrega nada. Não constrói para o próximo jogo que tu for apitar. Isso só cria uma pressão desnecessária. Claro que com uma bagagem que a gente já tem, com experiência, esse tipo de pressão já não te afeta. Mas a gente entende também que muitas vezes a insatisfação do torcedor com determinada tomada de decisão, que às vezes até está correta, não tem polêmica nenhuma, mas aos olhos do torcedor ou da mídia foi uma decisão polêmica, gera essa notícia. Os torcedores se revoltam e eles protestam de alguma forma.
— O dirigente, muitas vezes, se obriga a fazer uma situação como essa para dar satisfação para esse torcedor de ir lá bater na porta e pontuar a sua insatisfação. Mas isso não vai mudar os critérios da Comissão de Arbitragem.
— Infelizmente na nossa cultura de futebol brasileiro isso é algo que se tornou comum, não é algo de agora, é algo que lá atrás se permitiu que se começasse a fazer. É algo que talvez a gente ainda demore algumas gerações para conseguir desencravar isso do nosso sistema, porque não agrega em nada.
Você não fala de lances e de jogadores. Mas te vi comentar publicamente sobre aquele jogo do Bolaños no Gre-Nal, em 2016, quando ele toma pancada e você não vê. O que aconteceu ali?
— Os caras até esqueceram de mim, tu vai lembrar disso? (risos). Eu não fiquei marcado. Tenho a felicidade de não ter nenhuma restrição nos clássicos que apitei até hoje. Não foi algo que somente eu não vi, foi algo que todo mundo que estava no estádio não viu. Era uma época sem VAR, mas confesso que se tivesse VAR também não se enquadraria… Mas se eu falar isso aí, um monte de gente agora vai ficar louca. Foi um lance que não tinha realmente como ver, era de muito difícil visualização. Nem o próprio jogador teve esse protesto. Foi uma situação que aconteceu no início do jogo. ninguém no estádio protestou, nada. O jogador seguiu em campo. E o curioso desse jogo é que o segundo tempo não foi fácil de apitar (risos). Gre-Nal nunca é fácil.
Gre-Nal é o pior para apitar?
— É o pior de todos, é o mais difícil. Pela rivalidade, é muito grande.
Quais são os mais difíceis?
Eu não queria entrar nesse mérito, não. Mas eu posso pontuar, já apitei todos os clássicos do futebol brasileiro. E acho que depois do Gre-Nal, vem, pelo menos das experiências que tive, o Atlético-MG x Cruzeiro. Foi muito difícil atuar também nesse jogo. E Corinthians x Palmeiras também.
Daronco e Hulk se encaram em campo: atacante do Galo criticou duramente árbitro, que nunca mais apitou jogos do Atlético-MG — Foto: Pedro Vilela/Getty Images
No Rio de Janeiro é mais tranquilo então?
— Eu fiz Fla-Flu, Vasco x Flamengo, Fluminense x Botafogo. Achei um pouco mais “tranquilo”. É claro que tudo depende do momento, das equipes, do que que está valendo. A gente conversa também com os colegas que vêm apitar aqui os Gre-Nais do Campeonato Brasileiro. Eu digo para eles: “Cara, vocês estão pegando a tetinha (risos). No Brasileiro é tranquilo, cara. Eu quero ver do Gauchão que vale a taça. Ali os homens se matam”.
Muito jogador questiona a súmula dos árbitros. É possível ser totalmente fiel na súmula ao que acontece no jogo? O árbitro lembra de todos os xingamentos ali?
— Ah, mas se lembra, se lembra, se lembra… não sei se eu posso entrar muito nessa seara, mas muitas vezes as próprias imagens comprovam. A leitura labial hoje em dia está comprovando tudo e eu posso garantir que nenhum árbitro coloca ali, nenhum escreve o que não aconteceu. É mais fácil às vezes que faltem palavras ali do tanto que é dito, mas não tem nada ali que seja irreal. Em alguns momentos um atleta ou outro acaba se excedendo e para chegar um ponto de uma expulsão é porque aconteceu algo grave. Uma ofensa muito forte, direcionada, te olhando no olho ali, querendo te atingir.
Aí o jogador fala que “mandou tomar naquele lugar”, mas diz “não foi para você, foi para o cara do meu time…” Isso acontece também?
— Ah, toda hora isso acontece também. Tem (risos). Ele está te olhando no olho, mas não foi para ti. É normal, é normal, mas eles sabem que fizeram.
Eu te vi contar de torcedores mexendo com você em aeroporto. Isso você leva de letra hoje em dia?
— (Risos) Primeiro que o carinho das pessoas é muito grande. Até surpreende. Porque o árbitro ele é visto muitas vezes como um anti-herói, como um vilão do futebol. As pessoas abordam na rua, restaurante, aeroporto, principalmente para dizer “eu gosto muito do teu trabalho, sou teu fã”. “Gostei daquilo, gostei disso”. É muito bacana, isso aí é 95% dos casos. Raramente acontece uma situação ou outra de alguém te cobrar, algo de uma forma mais séria.
— De aeroporto tenho duas histórias muito marcantes. Uma até foi desse episódio que a gente conversou, do Bolaños, que tinha sido no Gre-Nal. Na terça fui apitar a Libertadores em Medellín. Era Nacional x Peñarol. Quando estou voltando de um voo da Colômbia até São Paulo tinha um torcedor do time, era 6h da manhã. E eu mal dormido ainda do voo e, imagina, apanhando desde o momento do apito final do jogo. Na entrada do freeshop em São Paulo, um cara de longe começa um protesto um pouco mais pesado. Para me tirar do sério foi algo que que atingiu. E eu já estava louco.
Ainda com cabelos escuros, Anderson Daronco em 2014 no jogo de Atlhetico e São Paulo — Foto: Pedro Vilela/Getty Images
— Fui para cima do cara assim: “Quem é tu para ficar gritando comigo no aeroporto? Vai resolver o problema do domingo agora?”
— Isso. Mas aí apartaram. Não que fosse acontecer muita coisa. Mas vontade não faltava. E o Heber (Roberto Lopes, ex-árbitro, hoje VAR) estava junto, me empurrava (risos), era o demoninho no meu ouvido. “Vai lá, Daronco, vai lá”. O outro, que era o (Marcelo) Van Gasse e Fabrício Vilarinho, os dois atuantes ainda: “Pelo amor de Deus, pensa na tua carreira”. Aí uma ou duas horas depois tinha um voo em Guarulhos para Porto Alegre. Esse cara estava na fila e começou a me encarar assim. Ele e um amigo.
— Estavam a três metros de mim. Aí eu já abri a caixa de ferramenta. Xinguei todos os palavrões que eu tinha. Até que fui fazer um raio X do cara para ver se aguento (risos). Aí eu olhei assim, quando eu cheguei nos pés ele estava de pantufa. Esses chinelinhos de vó que aqui no Rio Grande do Sul a gente faz muita piada que é para no inverno não gelar os pés. Eu comecei a rir, parei de xingar e disse: “Na na na na na na… te larguei de mão. Para, rapaz. Qualquer um aqui pode me xingar, mas menos tu de pantufa”. Aí o amigo já começou a rir. Virou piada.
Você era brigão na adolescência?
— Eu sou um amor, cara. Se a pessoa vem falar comigo de boa, nós vamos ficar conversando até amanhã. Mas se vem com uma pedrada muito forte, ela bate no peito e volta. Era um pouco nervoso (na adolescência), mas eu sou da paz.
Você foi eleito em 2015 o melhor árbitro na eleição da CBF. E numa eleição de jogadores você foi eleito o melhor e o pior.
— Eles precisam se definir (risos). Mas eu acho que tive muito mais voto para melhor do que para pior. Eu vou confiar nisso.
Os jogadores te respeitam, mas alguns te enfrentam. Sentem que às vezes querem enfrentar essa tua imagem do cara que é forte e tal, como por te desafiar?
— Eu não tenho imagem nenhuma. Os craques que são os caras, são os grandes atores do espetáculo. Nosso grande objetivo é entrar no jogo e passar sem ninguém se lembrar de ti. Só que isso é impossível no futebol brasileiro. Mas não vejo isso como enfrentamento. Às vezes um jogador que não tem o perfil disso numa determinada partida, seja por uma pressão que a equipe está sofrendo ou algum determinado contexto ali dos últimos jogos, leva ele ter algum tipo de comportamento que não seja o comportamento habitual deles. Claro que tem uns que são sempre assim, mas a grande maioria não é. Todos estão buscando fazer ali o seu melhor, a gente entende também que eles estão defendendo o seu lado naquele momento.
— A gente só pede que tenham um pouquinho mais de compreensão, às vezes que não ataquem tanto o lado pessoal do cara numa entrevista no final do jogo. Mas na grande maioria das vezes o que acontece ali na partida termina ali.
Acha que o árbitro deveria dar entrevista depois do jogo sobre o que passou?
— Já pensei muito sobre isso. Nos prós e nos contras e, na verdade, a gente sabe que muitas vezes o nosso silêncio permite inúmeros ataques. Tu vai ser atacado de tudo quanto é lado sem ter o direito a se defender ou sem ter o direito a dar o teu ponto de vista sobre determinada situação. Mas a gente também sabe que tudo aquilo que eu falo hoje vai ser utilizado sempre. Não vai ser utilizado só para essa situação aqui específica, vai ser utilizado por um monte de coisa. Talvez as pessoas não estejam preparadas para escutar o que o árbitro tem a dizer.
— Uma situação hipotética, eu apitei jogo de A contra o B. Porque cobram muitas vezes quando o árbitro toma uma decisão ali que errou ou foi uma decisão, sei lá, polêmica, digamos assim. Aí o árbitro vem e explica: “Tomei essa decisão porque para mim foi assim, assado, foi dessa forma”. Ou até chega daqui um pouco e assume um erro. Mas isso vai ser sempre utilizado contra ti porque o A vai utilizar isso, porque tu já deu uma declaração que tu errou contra eles. Então eles vão utilizar isso todos os outros jogos que tu for apitar daquele time A. Depois quando esse B que foi favorecido for jogar contra um outro, o time C vai utilizar essa declaração também para dizer que tu já favoreceu em alguma oportunidade.
— É muito complicado essa questão de dar entrevista, mas eu sou favorável que aconteça maior aproximação. Acho que tem acontecido mais, da arbitragem com os torcedores em geral, com a imprensa, mostrar um pouco mais como as coisas funcionam, dar mais transparência para o nosso trabalho, que é um trabalho forte, muito pesado. É muito duro ser árbitro, principalmente no Brasil. Hoje em dia também com essas divulgações dos áudios, a própria Comissão de Arbitragem fala. Rodada após rodada eles chegam e dizem: “Olha, o árbitro poderia ter tomado uma decisão diferente naquilo ali por isso”. Por isso que às vezes é até melhor o silêncio. Deixa as pessoas debaterem, de domingo até terça-feira, quarta-feira vai vir uma nova rodada e o assunto vai ser outro.
Família sofre muito com as críticas?
— Eu tenho dois filhos já adolescentes, que acompanham futebol e muitas coisas acabam chegando até eles. Nunca se queixaram para mim de situações na escola, de algum pai ou de algum coleguinha vir protestar para alguma decisão minha. O que os pais mais fazem é ir perguntar para os meus filhos o meu time da infância. Só. É o que mais fazem. Só que meus filhos já foram extremamente bem treinados para responderem.
— Quando alguém tiver esse tipo de pergunta tu diz assim, ó: “Tu certamente tem uma coisa mais inteligente para me perguntar do que isso”. Daí funciona, deu certo até hoje.
Você é árbitro e se dedica apenas a isso, como muitos hoje no Brasil. Essa profissionalização que as pessoas cobram já existe nesse sentido para você?
— A gente já tem um comportamento profissional. O árbitro de elite hoje, no futebol brasileiro, já tem esse comportamento. Ele só não tem este reconhecimento. É possível que num futuro próximo a gente debata mais sobre essa profissionalização. Ano passado a gente teve uma audiência no Senado sobre isso. Só que vamos ter que debater isso com todos os agentes do meio esportivo. A própria CBF entra nessa nesse meio, os clubes… Não é algo tão simples também. O Brasil é um país de dimensões continentais, a gente teria que que prover meios para que pudesse haver esse acompanhamento de todos, do Oiapoque ao Chuí. Pelo menos aqueles que fossem profissionais.
— Mas quem seriam os árbitros profissionais, que número seria, só os árbitros Fifa, só os da primeira divisão, só os árbitros do quadro da CBF? Como ficariam as federações? Onde a gente ia treinar, qual ia ser a nossa base, quem pagaria essa conta? A gente tem que avançar na conscientização de que isso realmente traria melhora muito grande para um serviço que é de muita qualidade, sim. Embora a gente veja rodada após rodada algumas polêmicas, a arbitragem brasileira é sim muito boa.
— A gente faz algo muito próximo da profissionalização, por exemplo, nas fases finais da Copa do Brasil, ali a partir das oitavas de final. Vemos vídeos dos jogos, ficamos concentrados, vamos a campo, treinamos situações com jogadores similares aos que a gente vai ter na partida. Está aí mais uma prova que quando o arbitragem tem a oportunidade de treinar e se dedicar de uma forma muito mais profissional, o nosso rendimento é muito melhor.
Outro dia você disse que pegava 100 kg no supino. É isso mesmo?
— Ah, respondi qualquer coisa para as pessoas pararem de me incomodar. Não sei por que tanta curiosidade que as pessoas querem saber quanto que eu levanto na p… do supino, c… (risos)
Mas essa coisa da musculação começou quando?
— Eu fazia estágio na academia da Universidade Federal de Santa Maria. Já aproveitava e treinava. As pessoas que me veem e fazem algum tipo de julgamento do tipo: “Ah, toma isso, usa aquilo, é o suco daquilo, não sei o quê, é fake…” Como se fosse de ontem para hoje. Eu comecei a treinar com 20 anos de idade. Eu tenho 43. São, no mínimo, 20 anos fazendo a mesma coisa. Se minimamente eu treinei certo, meu corpo vai desenvolver.
— Isso sempre foi uma curiosidade das pessoas. Até as inúmeras matérias que fizeram comigo, assim que eu surgi na arbitragem, quiseram levar muito para esse lado: “Ah, a gente quer mostrar como é um treino teu”. Não vou mostrar como é. Nunca quis isso, não interessa como eu treino. Eu não vou fazer videozinho.
— Não sou o cara que vai pegar e vai fazer um supino ali, uma puxada, algum exercício de bíceps, vou filmar e vou postar. Não é isso que eu quero. Eu treinava porque era um tipo de atividade física que me satisfazia porque eu gostava muito de jogar futsal, handebol. Depois que eu comecei a apitar um pouco mais sério tive que parar porque corria risco de me machucar. A academia foi algo que que na época supriu essa carência e peguei gosto.
— É claro que eu gosto de treinar, mas nunca fui esses monstros de academia. Eu me considero um cara normal, sou apenas um cara alto, um pouquinho grande, mais largo do que o normal, mas para o meio do futebol, onde os jogadores já têm uma estatura um pouco menor, um corpo um pouco diferente, de menos peso. É claro que eu acabo destoando, mas eu também sou bem diferente desses monstros de academia. O que eu mais escuto às vezes quando eu estou em aeroporto, algum restaurante: “Nossa, eu pensei que você fosse maior, pelo que vejo na TV”. Claro, né, não sou um monstro, sou um ser humano normal.
Acha que no seu início você intimidava os jogadores?
— Não sei, pode ser que sim, mas o objetivo nunca foi esse. Mas pode ser que tenha acontecido e até pela repercussão midiática que teve pode ter acontecido isso de uma forma indireta.
Como acompanha as denúncias de manipulação de partidas?
— Eu nunca presenciei nada nesse sentido, mas claro que a gente conversa, a gente debate sobre as situações que aconteceram e foram noticiadas. Algo que nos enche de muito orgulho é que em tudo isso que mexeram com essas questões de apostas não tem nenhum árbitro. Não citaram nenhum. E é a categoria que é mais falada, considerada a maior vilã no meio do futebol. Te chamam de tudo, de ladrão, de corrupto e durante toda essa discussão e repercussão que teve desses casos todos ninguém citou nenhum nome de árbitro e não chegaram nem perto da arbitragem. Tenho certeza também que não vão chegar perto de ninguém nesse sentido. Mas é uma pena que alguns jogadores tenham se deixado levar. Tira o brilho de um esporte que todos nós somos apaixonados. Acho que a gente tem que caminhar juntos para terminar com isso. Quem sabe fazer campanhas educativas e cada vez procurar erradicar isso no meio do futebol.
(Nota da redação: a entrevista foi realizada em 27 de janeiro, antes das denúncias mais recentes de John Textor, do Botafogo)
Você está com 43 anos, é uma idade difícil de ir para a próxima Copa. Qual o futuro do Daronco?
— De verdade eu não parei pra pensar nisso ainda. Não estou querendo me aposentar, tenho muita lenha pra queimar, ainda tem alguns objetivos na carreira a atingir. Tem um número determinado de jogos aí que eu quero fazer ainda de Campeonato Brasileiro.
— Eu tenho 223 jogos. Quero chegar no mínimo a 300. Mais uns 3 ou 4 anos eu consigo. A partir daí eu começo a pensar. Ver como é que o meu corpo vai estar se sentindo também, como é que a paciência vai estar (risos), mas até lá o foco é total na arbitragem.
Você pensa em contar sobre a arbitragem num livro?
— Vou escrever um livro. Eu já tinha uma parte de um livro escrita. Alguns capítulos sobre a vida de arbitro, sobre situações na arbitragem que foram acontecendo, em jogos, situações curiosas. Mas infelizmente acabei perdendo o arquivo.
Mas você está dando o nome aos bois?
— Claro, claro. Não tem nenhuma caixa preta. Mas dá pra falar com um pouco mais de liberdade. Eu sei que as pessoas são um pouco curiosas em relação ao universo da arbitragem. Eu vejo pelos programas que às vezes tenho a oportunidade de participar, como isso chama a atenção das pessoas. Então poder aproximar e trazer um pouco mais dessa realidade é muito bacana. O árbitro não é um ser humano que cai de paraquedas e depois é abduzido e some do mapa. Sou um ser humano que vai no restaurante, vai no mercado, caminha na rua, que brinca com os colegas, que faz zoeira. Uma pessoa como qualquer outra e a gente também tem muita história para contar.