Tendo lidado no ano passado com uma investigação do Ministério Público de Goiás sobre a manipulação de resultados em jogos do Campeonato Brasileiro, o Brasil lidera o ranking de partidas no esporte com suspeitas de manipulação.
Segundo um relatório preparado pela consultoria global Sportradar, com sede na Suíça, de um universo de aproximadamente 9 mil partidas monitoradas no futebol brasileiro em 2023, em 109 delas, ou 1,21% do total, foram identificadas suspeitas de manipulação de resultados.
Para chegar aos jogos suspeitos, a consultoria se vale de uma ferramenta de inteligência artificial que indica aqueles em que há apostas esportivas relacionadas que fogem ao padrão do esporte. Após o apontamento feito com base nos algoritmos, os jogos passam por uma análise humana mais minuciosa que confirma os que devem ser classificados como suspeitos.
Segundo Marcel Belfiore, especialista em Direito Desportivo e sócio do escritório Ambiel Advogados, o Brasil legalizou as apostas em eventos esportivos no fim de 2018 e, por cerca de quatro anos, houve um aumento significativo da atividade de forma livre e ilimitada, sem que houvesse qualquer regulamentação do setor.
“Essa lacuna acabou criando um cenário sem a participação adequada do Estado na fiscalização e controle de irregularidades, que eram relegados apenas às próprias operadoras de apostas (casas de bet), igualmente vítimas dos manipuladores”, diz Belfiore.
Além disso, a sensação de impunidade, aliada à situação econômica de muitos atletas de pouca expressão, contribuíram para estimular a atividade de manipuladores no Brasil, que se aproveitam do extenso e variado cardápio esportivo nacional para realizar apostas em eventos cujo resultado já está comprometido, acrescenta o especialista.
Apenas em dezembro de 2023, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto que regulamenta as apostas de alíquota fixa, como as chamadas bets. A proposta foi sancionada no dia 30 do mesmo mês pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
No fim de janeiro, o governo criou a Secretaria de Prêmios e Apostas, que será responsável pela regulamentação e pelo monitoramento do mercado das bets e dos jogos online.
“A principal medida para reduzir o risco de manipulações é a regulamentação do setor. Com a regulamentação, o Estado arrecada e, consequentemente, passa a ter recursos para aparelhar os órgãos de controle e fiscalização”, diz Belfiore.
Embora tenha liderado o levantamento, que monitorou 118 competições da modalidade no país, o futebol brasileiro registrou uma queda de 29% nos jogos suspeitos de manipulação em 2023, na comparação com o ano anterior.
Foi a primeira redução desde 2020, com a regulamentação do setor e a investigação do MP contribuindo para coibir a prática, assinala o sócio do Ambiel Advogados.
A Operação Penalidade Máxima do Ministério Público demonstrou a existência de um esquema de manipulação de partidas de futebol para ganho ilícito em sites de aposta esportiva. Atletas eram aliciados para, por exemplo, cometer pênaltis ou tomar cartões de propósito.
Entre as partidas sob investigação, está o duelo entre Avaí e Flamengo pelo Campeonato Brasileiro de 2022, que terminou com uma vitória por 2 a 1 do clube catarinense. O primeiro gol da partida, a favor do Flamengo, foi contra, marcado pelo zagueiro Wellington Nascimento.
Das partidas identificadas pela Sportradar com suspeitas de manipulação, 15 foram disputadas em competições organizadas pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol) e 94 por federações estaduais.
O Brasil lidera com folga o ranking de jogos suspeitos. A República Tcheca, segunda da lista, teve 67 partidas consideradas com risco aumentado de manipulação. Na sequência vem as Filipinas, com 65, e a Rússia, com 55 jogos suspeitos de manipulação.
Para reduzir o risco de manipulação, a CBF —que mantém um contrato com a Sportradar desde 2018 para monitoramento dos campeonatos nacionais e estaduais— criou em novembro do ano passado a Unidade de Integridade do Futebol Brasileiro, nova frente que prevê o desenvolvimento de boas práticas.
A CBF também firmou no ano passado um convênio de cooperação com a Polícia Federal para o combate à manipulação de resultados no futebol. Pelo acordo, a PF receberá uma cópia de todos os relatórios sobre casos suspeitos detectados pela Sportradar.
“O desenvolvimento de jogos de apostas online aumenta os riscos de manipulação e impõe novos e mais complexos desafios ao combate à corrupção no esporte. Este fenômeno é uma ameaça mundial e não seria diferente no país do futebol”, afirmou o presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues.
Para Marcos Sabiá, CEO da plataforma de apostas Galera.bet, é preciso investir na educação dos atletas, para que elas compreendam que, “qualquer que seja o ato que ele participe, ainda que seja um simples lateral ou cartão sem muita relevância, constitui uma atividade criminosa e na qual ele fará parte de uma organização criminosa.”
Popularidade faz do futebol esporte mais suscetível a manipulações
O relatório aponta também que o futebol é a modalidade esportiva em que mais ocorrem partidas com suspeitas de manipulação.
Ao todo, a consultoria detectou 1.329 partidas suspeitas durante o ano passado em 11 modalidades e 105 países, uma alta de 9% em relação a 2022.
Do total, 880, ou cerca de 66,2%, foram no futebol. Na sequência vêm basquete, com 205 partidas (15,4%), tênis de mesa, com 70 (5,2%), tênis de quadra, com 61 (4,6%) e e-sports, com 46 (3,5%).
Sendo o futebol o esporte mais popular no Brasil, e dada as proporções continentais do país, existe uma infinidade de jogos de futebol ocorrendo todos os dias, com milhares de atletas envolvidos, gerando uma gama enorme de “alvos” para manipulação, diz Belfiore.
No consolidado, em termos proporcionais, o levantamento da Sportradar identificou um jogo suspeito a cada 467 partidas. No futebol, a proporção é de uma suspeita a cada 160 partidas, e de uma a cada 244 no basquete.
“Um padrão semelhante de partidas suspeitas provavelmente persistirá em 2024. As incertezas econômicas contínuas e seu impacto em equipes esportivas e atletas provavelmente desempenharão um papel significativo na influência da integridade esportiva”, aponta a consultoria.