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Daniel Servidio e Marcella Azevedo
23 de mar, 2024, 07:00
Ronaldo tinha 17 anos quando entrou em campo vestindo a camisa da seleção brasileira pela primeira vez. Os mais de 90 mil torcedores presentes no estádio do Arruda, em Pernambuco, aplaudiam a atuação de Bebeto, autor de dois gols, enquanto um rapaz franzino, com cabelo bem curto e número 19 às costas, se preparava para jogar os últimos dez minutos do amistoso contra a Argentina. O Brasil venceu por 2 a 0 naquele 23 de março de 1994, há exatamente três décadas, e conheceu de perto o menino que terminaria a carreira com dois títulos de Copa do Mundo e no posto de maior artilheiro do país em Mundiais.
A partida em solo pernambucano foi violenta para os dois lados, com quase 70 faltas marcadas pelo árbitro brasileiro Wilson Souza de Mendonça, que mostrou apenas seis cartões amarelos. O jovem Ronaldo pareceu não se importar: o primeiro toque na bola usando a Amarelinha foi de letra, no meio de campo, após receber passe de Leonardo. A bola foi interceptada e a jogada não prosseguiu.
O duelo terminou com a torcida brasileira em êxtase, aos gritos de olé. O então camisa 19 até tentou, mas não teve muitas chances. Nada que o abalasse — ainda haveriam mais 104 jogos pela seleção depois disso.
Chegada à seleção
Ronaldo não tinha nem um ano como profissional quando estreou pela seleção brasileira. O primeiro jogo pela equipe principal do Cruzeiro aconteceu em 25 de maio de 1993, contra a Caldense, pelo Campeonato Mineiro. Não demorou para ser titular e virar artilheiro do clube nas temporadas de 1993 e 1994. Em pouco mais de um ano no time celeste, foram 56 gols em 58 jogos.
As atuações em Minas Gerais chamaram a atenção da imprensa e dos torcedores. Mas o então técnico da seleção brasileira, Carlos Alberto Parreira, que buscava fechar o grupo que iria para a Copa do Mundo de 1994, disputada nos Estados Unidos, mostrava — pelo menos publicamente — uma opinião firme sobre convocar um atleta tão jovem. “Quem pensa que com jovens vamos ganhar o Mundial, pensa diferente de mim”, dizia.
“O Parreira já alimentava esse negócio de convocar o Ronaldo, pelo que ele vinha fazendo na época no Cruzeiro, mesmo com pouca idade, para conhecê-lo melhor, para estar junto com o grupo e para ver como ele se portava”, disse Moraci Sant’Anna, então preparador físico da seleção brasileira, à ESPN.
O tom de Parreira nas entrevistas mudou. O jogo contra a Argentina foi o antepenúltimo antes da convocação para a Copa. O atacante não entrou em campo no amistoso seguinte contra um combinado de PSG e Bordeaux, na França, mas jogou na vitória por 3 a 0 contra a Islândia, em Florianópolis, seis dias antes da lista final. Fez um dos gols e participou dos outros dois. Foi o que o credenciou para ter uma vaga no torneio mundial. “Ele se sobressaiu muito no Cruzeiro. Mais importante do que isso foi a personalidade que mostrou contra a Islândia”, disse o técnico, ao justificar a decisão de levá-lo aos Estados Unidos.
Dois dias depois, em 12 de maio de 1994, o treinador já admitia que Ronaldo poderia até ser titular da seleção brasileira na Copa, que começaria pouco mais de um mês depois. O time tinha Bebeto e Romário na dupla de ataque e Viola e Muller como opções. “Se Ronaldo mostrar que pode ser titular, não tenho por que barrá-lo”, afirmava. O centroavante não chegou a entrar em campo no Mundial, mas fez parte do tetracampeonato. Segundo Moraci, a ideia da comissão já era prepará-lo para as edições seguintes.
Preparador físico Moraci Sant’Anna explica decisão da comissão técnica de convocar Ronaldo para a Copa de 1994
O preparador físico da seleção brasileira na Copa de 1994 concedeu entrevista exclusiva ao ESPN.com.br
O ‘mascotinho’ do grupo
O grupo para a Copa do Mundo de 1994 já tinha uma base quando Ronaldo passou a ser convocado. Nomes como Edmundo e Evair, que foram testados, ficaram de fora. O jovem ‘furou a fila’, mas a recepção na seleção foi a melhor possível.
“O pessoal tinha um carinho muito grande por ele. Garoto de tudo. O grupo tinha um carinho, formou uma família. Ele foi muito bem acolhido. Claro que tem aquelas brincadeiras com quem é calouro, muito novo. Ele era muito sorridente, solícito, brincalhão. O grupo acolheu muito bem”, disse Moraci.
O ex-meio-campista Zinho, titular da equipe, também relembrou as brincadeiras com o ‘novato’.
“Tinha aquela coisa de ‘ô, moleque, pega minha chuteira lá, carrega minha chuteira’. ‘Pega lá, me serve’, na hora da refeição. A gente tocava um samba, ele sempre estava ali, porque era um moleque descontraído. Na hora do pagode, do ônibus, estava ali, pegava um tamborinzinho, um chocoalho, cantava os pagodes com a gente, e sempre a galera: ‘Ô, juvenil, vai devagar'”, contou.
“Virou um mascote, um amuleto, aquele garoto que o grupo abraçou e que foi muito importante mesmo sem entrar em nenhum jogo [na Copa do Mundo]. Foi peça importante em todo contexto”, completou.
Zinho relembra brincadeiras dos primeiros dias de Ronaldo na seleção: ‘Ô, juvenil, vai devagar’
Tetra com a seleção em 1994, Zinho relembrou a relação com o Fenômeno
Um fenômeno despontando
Ronaldo não cativou o grupo apenas pelo bom humor e o jeito sorridente. O desempenho nos treinos era de brilhar os olhos.
“Ele era uma das últimas opções para entrar. Mas no treinamento, no dia a dia, a gente viu um futuro brilhante, um jogador que tinha tudo para se tornar um craque”, disse Zinho.
“Era garoto ainda, com todo físico a ser desenvolvido, mas a gente já via esse fenômeno despontando, com toda técnica, habilidade e velocidade que ele tinha para executar as ações em campo”, afirmou Moraci. “Mesmo junto com grandes nomes que estavam [na equipe durante os treinos], já mostrava uma habilidade muito fora da média”, completou.
Cenário perfeito para a estreia
Todo contexto da época gerava expectativa pela estreia de Ronaldo, tanto nos torcedores quanto nos companheiros de seleção. O cenário do estádio do Arruda parecia perfeito. Pouco menos de um ano antes, a equipe de Parreira estava desacreditada nas Eliminatórias, correndo risco de ficar fora da Copa do Mundo, ouvindo vaias de torcedores mesmo atuando em casa.
Em agosto de 1993, no Recife, as coisas foram diferentes. Os torcedores pernambucanos abraçaram o time, que resolveu entrar em campo contra a Bolívia de mãos dadas — o gesto virou um símbolo daquela equipe. Deu certo. A união entre torcida e atletas deu gás para o Brasil, que venceu por 6 a 0, e elenco decidiu que a capital pernambucana, por todo amor e apoio demonstrados, seria o primeiro destino na volta ao Brasil em caso de título.
No amistoso contra a Argentina, em 1994, o calor e carinho dos brasileiros presentes eram os mesmos — e a vaga para a Copa do Mundo já estava garantida.
“Os nossos dias em Recife eram de festa, apoio total, alegria. Isso trazia muita confiança para a seleção. O Parreira tinha o resultado na mão, 2 a 0, estava bem, era hora de colocar o garoto, a sensação, a revelação do futebol, em um Brasil e Argentina, com o jogo já muito encaminhado e nessa atmosfera de muito apoio e alegria. Era uma lua de mel”, relembrou Zinho.
Faltando dez minutos para o fim do jogo, Parreira colocou Ronaldo no jogo. “Vamos ver o garoto Ronaldo. Eu estava esperando com ansiedade uma apresentação dele [na seleção], se bem que vai ter dez minutos. Mas, com 17 anos, ele vai correr como um avião para cima dos argentinos”, dizia Galvão Bueno, na transmissão da partida, na TV Globo.
Ronaldo abraçou Bebeto à beira do campo, fez o sinal da cruz, e entrou no lugar do ídolo.
Encontro entre fã e ídolos
Qualquer garoto de 17 anos já sonhou em estar na seleção brasileira ao lado dos jogadores que só aparecem via pela televisão — e Ronaldo realizou esse sonho. Poucos anos antes, quando estava no São Cristóvão, antes de virar profissional, ele ainda tietava Bebeto, que agora era quem cedia o lugar na equipe.
“Eu vi Ronaldo começando. O Alfredo Sampaio, meu amigo, era treinador dele no São Cristóvão. Eu ia jogar uma partida no Maracanã, e eles iam jogar a preliminar. O Alfredo disse: ‘Pô, tem uma pessoa que quer te conhecer muito, um moleque de muita qualidade’. Eu estava no aquecimento e ele (Ronaldo) chegou, bem magrinho, e foi apresentado. Ele já gostava muito de mim, queria me conhecer”, contou Bebeto, à ESPN.
“Já sabia do potencial dele [quando chegou à seleção]. Ali foi um aprendizado para ele. Ficava me imitando nos treinamentos, imitando meus dribles, que eu gostava de dar de letra em velocidade, e ele ficava fazendo igual”, completou.
Bebeto relembra dia que conheceu Ronaldo: ‘Já sabia que tinha um potencial muito grande’
Em entrevista exclusiva à ESPN, o ex-atacante falou sobre as primeiras impressões ao conhecer Ronaldo Fenômeno
A admiração era tanta que era perceptível até para os outros atletas. “Eu o via como admirador do caras que estavam lá, serviam de exemplo para ele. O Ronaldo, que é do Rio de Janeiro, viu muito o Bebeto jogando pelo Flamengo. Deve ter ido muito ao Maracanã aplaudir o Bebeto”, disse Zinho.
Primeiro passo de uma trajetória vitoriosa
Quando Ronaldo entrou no lugar de Bebeto, contra a Argentina, a partida já parecia encaminhada. O ídolo do jovem havia marcado dois gols, com duas assistências de Muller. O primeiro foi ainda aos seis minutos do primeiro tempo. Ao receber dentro da área, o camisa 7 dominou com a perna direita e, sem perder tempo, finalizou forte. O goleiro Goycochea falhou, e a bola entrou.
O Brasil ampliou aos 32 da segunda etapa. Após cruzamento pela direita, Bebeto subiu e cabeceou firme, no canto esquerdo do goleiro, que apenas pôde ver a rede balançar, sem reagir.
Os últimos dez minutos do confronto, com Ronaldo em campo, foram de toque de bola da seleção brasileira, que apenas controlou a partida até o fim — a primeira do ano do tetra. Os torcedores, empolgados, exaltavam a atuação aos gritos de olé.
Além de ser um clássico, o amistoso teve outro componente especial: a presença de Maradona no banco de reservas. Ele não entrou em campo, mas, claro, não deixou de chamar atenção e virar até uma inspiração a mais para a seleção brasileira.
“Para o Ronaldo, aquele ambiente do Arruda, o público, o carinho, ele estava ali se divertindo. É um menino que estava começando a ver o que era uma idolatria de um povo com uma seleção”, disse Zinho.
“Entrar em um grupo como era o nosso de 1994, como o público recebeu a gente, jogando com uma seleção que era forte, com o Maradona, que era um ídolo de todo mundo… Estrear com todo esse ambiente mexeu com o menino. Motivou o garoto. A gente via no semblante dele uma realização”, completou.
“Dentro do vestiário [após o jogo] ele foi parabenizado, estreia, ganhar da Argentina… Aquela coisa da rivalidade, estrear contra Argentina e ganhar. Melhor ainda: entrando no lugar do cara que fez dois gols. A seleção era muito encaixada, muito entrosada, e isso foi muito bom para o Ronaldo”, finalizou o tetracampeão.
O fim da partida foi também o pontapé inicial na trajetória vitoriosa de Ronaldo com a seleção brasileira.